O cinema mexicano tem um histórico de excelentes filmes ao longo de várias décadas, mas desde o começo dos anos 2000 alcançou uma abrangência enorme junto aos espectadores do mundo inteiro, principalmente graças à uma trinca de diretores que hoje são super premiados, mas que naquela época ainda tinham poucos filmes no currículo: Guillermo del Toro, Alfonso Cuarón e Alejandro González Iñárritu.
O auge dessa globalização do novo cinema mexicano se deu com o enorme alcance do filme Roma (2019) e todo o burburinho causado pelo lançamento de um filme tão grande e importante direto na Netflix, de certa forma solidificando a tendência de não lançar os filmes nas salas de cinema, algo que acabou se tornando lugar comum nesse nosso 2020 de salas fechadas.
Apesar de importante e premiado, aqui no Brasil conhecemos muito pouco do cinema mexicano, e a maioria das pessoas acabam se interessando apenas pelos filmes que já vem laureados por algum festival ou premiação.
Por esse motivo, resolvi indicar 3 filmes mexicanos que oferecem um ótimo panorama da força desse cinema hermano.
Como Água para Chocolate (Like Water for Chocolate – Alfonso Arau, 1992) – Amazon Prime Video
Somos introduzidos à história já num tom de fábula, com uma mulher chorando lágrimas que alagam uma cozinha e geram 20 kg de sal depois de secas. Se você não compra o filme logo nessa sequência inicial, vai ser muito difícil de acompanhar o restante igualmente fantástico.
Adaptado do primeiro romance da autora mexicana Laura Esquivel, na época casada com o diretor do filme, Como Água para Chocolate acompanha a vida de três irmãs e sua mãe num período que começa no final do século XIX, passa pela Revolução Mexicana, e vai até os anos 30 do século passado. A mãe super conservadora carrega traços de vilã da Disney e impõe a Tita um fardo de gerações: por ser a filha mais nova ela não poderá se casar, pois deve cuidar da mãe até que ela morra. Como em qualquer bom enredo folhetinesco, é óbvio que Tita se apaixona e acaba por dar início a uma série de ações que vão mudar por completo a ordem da família.
Por ser essa espécie de filha empregada, Tita ajuda desde muito cedo na cozinha, onde aprende diversos segredos e macetes. Ela é ensinada, por exemplo, que alguns pratos podem ser preparados com o intuito de causar algo nas pessoas que irão comê-lo, seja um orgasmo ou um desarranjo mortal, e ela se utiliza desse conhecimento em diversos momentos da história. A própria comida e a ideia de que a forma como a preparamos pode afetar os outros é tão importante na narrativa que acaba permeando todos os acontecimentos. Sabe a famosa frase que diz que a cozinha é o coração da casa? Nesse caso, arrisco dizer que a comida é o coração do filme.
Enquanto a Revolução Mexicana e a luta pela reforma agrária acontecem do lado de fora, Tita inicia sua própria revolução a partir da cozinha, mas vários dos atos de libertação partem de dentro dela mesma.
Visto hoje em dia, quase 30 anos após seu lançamento, muitos podem considerar o filme excessivamente melodramático e novelesco, mas poucas obras conseguiram transmitir tão bem a importância do ato de cozinhar, e que receitas passadas de geração em geração fazem parte da memória afetiva de uma família, da mesma forma que fotografias e móveis antigos, mas com certeza muito mais apetitosa.
Não assista com fome.
Ya no estoy aquí (I´m no longer here – Fernando Frias, 2019) – Netflix
Fiquei impressionado de encontrar essa pérola em meio a tantos filmes ruins que a Netflix tem lançado, e geralmente com muito mais divulgação.
Nos anos 2000, na cidade de Monterrey, no México, uma subcultura conhecida como Kolombia teve seu auge, mas acabou esmagada pelo peso da violência entre gangues derivada do narcotráfico. A razão de existir do movimento foi a música, uma espécie de cúmbia desacelerada, e tinha como característica grupos de dança concorrentes, roupas largas e coloridas, e penteados exóticos que remetiam à época dos Maias.
O filme começa acompanhando a vida de um desses grupos, Os Terkos, e mostra como a relação entre eles ia muito além da música e da dança, e acabavam por constituir-se como uma outra espécie de gangue, ainda que pacífica em sua essência. Assim como acontece nas favelas e outras comunidades mais carentes, onde o tráfico de drogas acaba atravessando mais diretamente a vida da comunidade, é difícil de fugir da violência que a mesma traz, ainda que muitas vezes se busque certa distância.
O protagonista dessa história é Ulises, o líder dos Terkos, um jovem de 17 anos que dança muito e é bem visto dentro da comunidade. Ele acaba se vendo indiretamente ligado a uma guerra de gangues, e sua família decide mandá-lo para os Estados Unidos, com medo de perdê-lo da mesma forma como aconteceu com seu irmão.
Transitando de forma não-linear entre esse dois tempos e lugares distintos, Monterrey e Nova Iorque, o diretor Fernando Frias cria um potente discurso sobre a relevância da cultura na construção de personalidades, da música e da dança como formas de expressão própria, e a importância de sentir-se parte de um grupo, aceito, em casa.
Uma vez em Nova Iorque, Ulises se vê distante de todas as características que compunham sua identidade: os bailes, seus amigos, sua família e, claro, a cumbia em cada esquina. Agarrado ao seu MP3 Player, ele navega pelas ruas como um fantasma, um imigrante sem importância. Até mesmo quando parece que ele está construindo uma amizade genuína, não tarda muito em percebermos que ela cai no lugar do fetiche com um suposto exoticismo estrangeiro. Nós fazemos isso o tempo todo aqui no Brazil também.
Assim como acontece com o Ulisses (ou Odisseu) do poema épico Odisseia, o filme também termina com Ulises voltando para casa, tendo o percurso e o caminho que o levou de volta como um atestado de seu crescimento. O Ulises que voltou não era mais o mesmo que um dia teve que partir, da mesma forma que a Kolombia já não existia da forma nostálgica e carinhosa que ele guardava na memória.
A Jaula de Ouro (La Jaula de Oro – Diego Quemada-Díez 2013) – Amazon Prime Video
Enquanto em Ya no estoy aquí temos a jornada de uma pessoa que não queria sair de seu lugar de origem, mas se viu obrigado a fazê-lo, em A Jaula de Ouro temos 3 personagens que não vislumbram nenhuma espécie de futuro promissor aonde estão, e decidem buscar uma vida melhor na Califórnia. O lugar de origem aqui é a Guatemala, mas o filme já começa com seus protagonistas se preparando para deixá-la. Temos Juan, Samuel e Sara, que decide se vestir de homem com o objetivo de “aumentar” sua segurança na viagem que estão prestes a fazer.
Passados 5 minutos de filme, já estamos viajando com esses três personagens, sem saber os perigos e descobertas que estão no caminho. A maneira de filmar, a atuação primorosa das crianças, as situações criadas, tudo isso é tão bem articulado que nós viajamos com eles e nos importamos com o que irá acontecer. Em algum lugar no caminho eles encontram Chauk, um indígena que também irá acompanhá-los.
Me chamou muito a atenção a diferença do nome original A Jaula de Ouro, para o nome em inglês The Golden Dream (Um Sonho Dourado, em tradução literal), que resume muitas das coisas que estão sendo ditas e mostradas no decorrer da obra. Para os personagens, ainda que seja uma forma de fugir da miséria em que vivem, os Estados Unidos são uma espécie de jaula, de prisão mesmo, onde estão encarceradas suas possibilidade de crescer. O outro título trata o destino dessa jornada como sendo algo idílico e perfeito, mas essa experiência está muito longe de ser um sonho. Está mais para um pesadelo.
Apesar de evitar criar seu filme em torno do choque causado pela violência gráfica, o diretor Diego Quemada-Díez escolheu por sugerir tal violência muito mais do que mostrá-la, e o resultado é devastador. Muitas vezes a sugestão é mais eficiente do que o explícito, e o filme não nos poupa do sofrimento pelo qual todos eles passam. Parafraseando uma crítica que li, “A Jaula de Ouro é tão real que chega a doer.”
Não vou entrar em detalhes, pois acredito que a melhor maneira de apreciar esse filme é embarcar na viagem sem saber quase nada do itinerário.